sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Você traz a lenha

Corri para o quarto e reparei a noite de chuva - as vidraças embaçadas me relembram a infância feliz, com cheiro de terra molhada. Os olhos brilhantes denunciavam o desejo de colocar pra fora todo aquele amor reprimido. Aliás, acho que tenho falado demais nesse enigma pairante sobre a cabeça, pedindo forma, pedindo cor. Percebo então que minhas baforadas formam uma película composta por minúsculas gotas, dentre as quais inocentemente rabisco o nome dele. Aquele inútil, imprestável amor que inventei pra gastar os neurônios, e iniciais desinteressadas no caderno. 
Acendo o cigarro no quarto mesmo, me esparro entre as roupas já amarrotadas pela preguiça cotidiana. Sem mais nem por que, resolvo me arrumar para a imagem devolvida pelo reflexo do espelho. Não faz mal, pensei. Traje desenterrado do fundo da gaveta, estilo pin up: estampa de bolinhas, lenço para o cabelo, batom vermelho. Que tola! Ajusto o vestido ao corpo esbelto e exibido, uma verdadeira diva que me dava ar de saúde. Maquiei a angústia. Fumo mais outro cigarro e paro pra observar o cinzeiro. Brincando com as piolas, faço uma cara ensaiada pra atrair uma suposta atenção, imitando os gestos Marilyn Monroe - sensuais e encharcados de mensagens implícitas. Imaginei que se fossem pra ele, capricharia. Olho no espelho, toco a boca que grita pelo macio do beijo. Mas a outra boca não se faz presente, a não ser dentro do pensamento embrulhado, causador de frios na barriga, extensão do frio lá fora. 
Saio a bailar pela sala ao som de um rádio velho que resta nos fundos. Dança sem par, sensação ímpar. Música antiga, de melodia suave. Suave como minha saudade. Volto a janela do quarto que já não está embaçada, me passando a impressão de ter alguém lá fora, de preto. Imaginei ser o próprio - no fundo eu guardava uma expectativa falsa da chegada repentina, que nem no cinema hollywoodiano. Ninguém além do vigia da rua, fingindo cuidar do escuro enquanto dormia por baixo do cansaço. 
Retirei-me em passos lentos, abri um livro de poemas qualquer. Não achei nada que encaixasse com a linguagem do dono da atitude sádica. Nada que não falasse de histórias com final feliz. A minha não era, pois nem continuação tinha. Mas não havia romances, apenas alguns contos breves. E era assim que minha literatura de cabeceira e da vida estavam.
De súbito, o telefone toca. Alô sem resposta, barulho de vento. Não era número conhecido quando busquei o bina. Talvez um enganado da noite, ou quem sabe ele querendo ouvir minha voz de um lugar inusitado. Apenas ouvir... quanto desfecho para nada! A ilusão se apagara entre a realidade cruel e a latência do sentimento, que dormia há séculos. E dormia pesado. Sentimento que de nobre só tinha o nome. 
De olhos ainda abertos, quase devaneando no sofá, tomei o meu café preto preparado com a lembrança vaga das receitas de minha mãe. Refletindo a porta de vidro da frente, me vi como mulher, amante de mim. Mas amante dele, amante da vontade de amar. Amante do cheiro, do toque, da companhia silenciosa que fala alto. Amante da soma do dois que resulta em um, na cama do quarto, na janela ao observar a rua vazia, no sonho em plena vida real. Amante das palavras sussurradas, do cabelo afastado com jeito, do hálito quente. Amante do que se esvai entre a neblina no céu e o sinuoso desejo de estar. Chuva, nostalgia, abraços sem pudor.
E assim minha noite se acaba. 
Vento gelado que remonta a lembrança da face e a certeza da minha solidão. Sem volta a infância, só me resta a súplica ao único moço no mundo que pode me trazer a lenha. 
Meus olhos míopes imploram sem que ele escute: Aqueça-me, meu bem.


"O teu amor é uma mentira
Que a minha vaidade quer
E o meu, poesia de cego
Você não pode ver 

(...)
Mas ficou tudo fora de lugar
Café sem açúcar, dança sem par
Você podia ao menos me contar
Uma história romântica."

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