terça-feira, 5 de julho de 2011

Vida-titã



"Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo..." (Os degraus - Mário Quintana)




Olhei pra uma garota de apenas quatorze anos, com um câncer, mas olhos cheios de fé e um sorriso esplêndido e conformado. Li sobre um poeta soropositivo e que continuou a escrever até o dia de sua morte. Ouvi a história de uma estudante de vinte anos numa tentativa suicida. Sorri para um idoso com espírito de jovem estampado numa dança contagiante. Observando esses personagens, pensei curiosamente o que estaria por trás deles, o que haveria de comum em todos eles, e o que os diferenciaria. Consequência dessa observação, restou-me a impressão de que as coisas hão de ser sempre complicadas para uns e fáceis pra outros e que sempre existirá a real-comum inversão desses extremos: a mania de complicar o que poderia ser fácil, e a dignidade em facilitar o que deveria ser difícil. 
Com vergonha, vejo exemplos como a menina com câncer, que sorri pro pai e diz que também pode ser feliz se o membro for amputado. Ela faz de todo-santo-dia uma festa de quinze anos e se sente uma debutante a cada passar de ponteiro presenteado. 
Depois vem o escritor aidético que continua a escrever e desabafar. Ele ainda questiona sobre a vida, mas como a garota doente, não espera a morte. Busca forças para continuar vivendo mesmo em meio a um monte de saudáveis ingratos - nós. Não desiste da batalha, não se entrega e simplesmente se expressa nos versos, dando pistas de que está vivo, e bem vivo.
Aí vem a estudante de apenas vinte anos que tenta suicídio e que tem lá seus motivos psicológicos graves que jamais entenderemos - porém não a julguemos - mas que diferente do escritor e da garota com câncer, quase desiste do maior espetáculo que atuamos sem parar. Ela acabou por dar crédito a vida naquele momento, que mesmo conturbada, deu-lhe a chance de se mostrar com seus aços e flores - não desistiu. 
Por fim, vem o idoso dançando em par com a vida e se embalando no som alegre como seu espírito. Ele se mostrou mais vivo do que nunca, mesmo estando mais perto da longa viagem. Causou inveja e como os outros, não desistiu da dança. Nem se entregou às marcas do tempo que com seu passar, gera dores e insignificância.
Eu me envergonho desses exemplos, porque tenho membros perfeitos e não me dou conta disso; não percebo o quanto eles são importantes e valiosos. Mas vejo uma iniciante da vida sem reclamar do que para mim poderia ser o fim do mundo. Sinto-me um lixo quando alguém me menospreza, mesmo sem eu ter uma doença incurável. Mas me envergonho porque vejo um escritor doente lutando para se sentir de carne e osso como os outros, ainda que envolto por preconceito e gente hipócrita. Às vezes eu penso em perder as esperanças num término de relacionamento, em alguns objetivos acadêmicos não-alcançados, nas tentativas frustradas de ser melhor. Eu me envergonho porque vejo uma jovem que mesmo com problemas maiores que os meus e com uma tentativa equivocada de furto à vida, está cheia de novas esperanças, as quais a revitalizaram. Depois sinto-me preocupada com a efemeridade do tempo e com suas marcas, mas me envergonho porque há um idoso aproveitado o pouco tempo que lhe resta, enquanto eu não aproveito nem um quarto dos meus longos e imprevisíveis anos, jogando um pacote de horas fora.
Com tristeza, deduzo que tudo que nos acontece enquanto momento e ato, não é percebido com tamanho valor merecido. Não sei se porque somos incessantemente ingratos, ou se por uma mera falta de atenção nas coisas simples. São essas coisas simples que vem me surpreendendo a medida que as datas correm, e com elas afirmo o quanto esperamos a perda para nos darmos conta da presença. Nossas pernas para andar, nossa saúde pra dar e vender, nossa chance de estar vivo e fazer diferente, nosso tempo vital precioso, são algumas das simplicidades-titãs que nos tornam cegos e adormecidos, fazendo-nos esquecer do que realmente importa: a magnitude das coisas mais óbvias que existem. 
O que tenho a dizer com isso, é que cada qual com sua múltipla forma de viver; cada experiência com suas milhões de faces, haverá sempre um pedaço de vida inteira esperando para ser saboreada, adorada e intensamente vivida.
Porque nós não devemos desistir de viver, se compreendermos que a vida não desistirá de nós, mesmo quando insistimos em ignorá-la despercebidamente.




Silvanna Kelly.



Um comentário:

  1. Sil...
    Esse texto foi você quem fez... Muito massa!
    Amei... usarei com certeza em algum momento da minha vida... isso eh certooo!

    Bjo e parabéns!

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